As meias na gaveta

Quem já elaborou provas para alunos de graduação sabe como é difícil escrever enunciados que todos os alunos entendam. Por mais que a gente tente fazer um texto bem claro, sempre aparece alguém com interpretação diferente da que tínhamos em mente. Às vezes, esta interpretação não faz sentido e pode ser desconsiderada; às vezes, porém, mostra que o texto não estava claro, e a questão acaba tendo que ser anulada.

Do ponto de vista do aluno, parte de um problema é tentar entender o que o professor quis dizer. Suponhamos por exemplo este problema de Probabilidades:

Uma moeda é lançada duas vezes. Qual é a probabilidade de ela mostrar duas coroas?

Mesmo neste exemplo simples, o enunciado é vago, e os alunos têm que fazer várias pressuposições antes de começar a calcular. Primeiro, como não existem coroas nas faces das moedas brasileiras, têm que pressupor que coroa seja um termo genérico para indicar a face oposta à cara, independentemente do que esteja impresso na moeda. Segundo, têm que pressupor que “lançar” a moeda significa atirá-la para cima revolvendo em torno do diâmetro, de modo que as duas faces se alternem no lado superior; se lançarmos a moeda como um disco de frisbee (girando em torno de seu centro, com as faces paralelas ao solo), o problema não faz sentido. Terceiro, têm que pressupor que a moeda seja equilibrada, e P(cara) = P(coroa).

Como este é um problema padrão, e todos os alunos já viram algo parecido durante as aulas, estas pressuposições são feitas automaticamente, tanto pelos professores quanto pelos alunos. Se o problema tiver um enunciado um pouco diferente, porém, as coisas podem ser mais complicadas. Por exemplo, este problema:

Uma pessoa tem 10 pares de meias, que guarda misturadas numa gaveta. De manhã, ao acordar, pega aleatoriamente duas delas e as calça. Qual é a probabilidade de que estas duas meias formem um par?

A resposta que primeiro vem à mente da maioria dos alunos é P = 1/19. A primeira meia pode ser qualquer uma das 20 que estão na gaveta, por isso sua probabilidade é 20/20. A segunda deve ser a que forma um par com a primeira – só há uma destas entre as 19 meias que ficaram na gaveta, portanto sua probabilidade é 1/19. A resposta do problema é dada pelo produto das duas probabilidades: P = 20/20 x 1/19 = 19.

Está certo isto? Sim… ou não. Se você parte do pressuposto de que os 10 pares de meias são diferentes entre si, está correto. Mas o enunciado não exige isto – o que acontece se todos os pares forem iguais; por exemplo se todos forem pretos? Neste caso, a segunda meia pode ser qualquer uma, sua probabilidade é 19/19, e a resposta do problema passa a ser P = 20/20×19/19 = 1.

meias L R2

Está certo isto? Sim… ou não. Se você parte do pressuposto de que em cada par de meias o pé direito e o pé esquerdo são idênticos, está certo. Mas o que acontece se todos os pares forem iguais, mas em cada par o pé direito for diferente do esquerdo, como acontece em algumas meias esportivas?

Agora, se a primeira meia foi um pé direito, a segunda meia pode ser qualquer um dos 10 pés esquerdos que ficaram na gaveta, e sua probabilidade é 10/19; a resposta do problema é P = 20/20×10/19 = 10/19.

Há portanto três respostas diferentes, dependendo do que foi pressuposto (mas não explicitado) sobre as meias na gaveta. Usei este problema em várias provas para alunos de graduação, sem nunca ter notado que poderia haver dúvidas na interpretação, e os alunos sempre responderam da primeira forma (P=1/19). Todos partiram do pressuposto de que os pares são sempre diferentes entre si.

A única dificuldade com o enunciado foi a de um aluno que me chamou de lado durante uma prova e me disse baixinho “Professor, não estou entendendo isto… Sei fazer o problema das meias, mas não entendi esta parte das ‘calça’ – o que tem ‘as calça’ a ver com ‘as meia’?”

(hshippert)

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